quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Intertextualidade

SOBRE INTERTEXTUALIDADE

Entre os variadíssimos tipos de referências, há provérbios, ditos populares, frases bíblicas ou obras / trechos de obras constantemente citados - literalmente ou modificados -, cujo reconhecimento é facilmente *perceptível pelos interlocutores em geral. Por exemplo, uma revista brasileira adotou o slogan : “Dize-me o que lês e dir-te-ei quem és”. Voltada fundamentalmente para um público de uma determinada classe sociocultural, o produtor do mencionado anúncio espera que os leitores reconheçam a frase da Bíblia (“Dize-me com quem andas e dir-te-ei quem és”). Ao adaptar a sentença, a intenção da propaganda é, evidentemente, angariar a confiança do leitor (e, conseqüentemente, a credibilidade das informações contidas naquele periódico), pois a Bíblia costuma ser tomada como um livro de pensamentos e ensinamentos considerados como “verdades” universalmente assentadas e aceitas por diversas comunidades. Outro tipo comum de intertextualidade é a introdução em textos de provérbios ou ditos populares, que também inspiram confiança, pois costumam conter mensagens reconhecidas como verdadeiras. São aproveitados não só em propaganda mas ainda em variados textos orais ou escritos - literários e não-literários. Por exemplo, ao iniciar o poema “Tecendo a manhã”, João Cabral de Melo Neto defende uma idéia: “Um galo sozinho não tece uma manhã”. Não é necessário muito esforço para reconhecer que por detrás dessas palavras está o ditado “Uma andorinha só não faz verão”. O verso inicial funciona, pois, como uma espécie de “tese”, que o texto irá tentar comprovar através de argumentação poética.
Há, no entanto, certos tipos de citações (literais ou construídas) e de alusões muito sutis que só são compartilhadas por um pequeno número de pessoas. É o caso de referências utilizadas em textos científicos ou jornalísticos (Seções de Economia, de Informática, por exemplo) e em obras literárias - prosa ou poesia - que às vezes remetem a uma forma e/ou a um conteúdo bastante específico(s), percebido(s) apenas por um leitor/interlocutor muito bem informado e/ou altamente letrado. Na literatura, podem-se citar, entre muitos outros, autores estrangeiros, como James Joyce, T.S. Eliot, Umberto Eco.
A remissão a textos e paratextos do circuito cultural (mídia, propaganda, outdoors , nomes de marcas de produtos etc.) é especialmente recorrente em autores chamados pós-modernos.
Os teóricos costumam identificar tipos de intertextualidade (cf. KOCH & TRAVAGLIA. Texto e coerência. São Paulo, Cortez, 1989. pp.88-89), entre os quais se destacam:
- a que se liga ao conteúdo (por exemplo, matérias jornalísticas que se reportam a notícias veiculadas anteriormente na imprensa falada e/ou escrita: textos literários ou não-literários que se referem a temas ou assuntos contidos em outros textos etc.). Podem se explícitas (citacões entre aspas, com ou sem indicação da fonte) ou implícitas (paráfrases, paródias etc.);
- a que se associa ao caráter formal , que pode ou não estar ligado à tipologia textual como, por exemplo, textos que “imitam” a linguagem bíblica, jurídica, linguagem de relatório etc. ou que procuram imitar o estilo de um autor (cf. texto “Grande ser, tão veredas”, de Paulo Leminski, publicado em A Folha de São Paulo , e reproduzido em KOCH & TRAVAGLIA: 1989, pp.89-90), em que o autor comenta o seriado da TV Globo, baseado no livro de Guimarães Rosa, procurando manter a linguagem e o estilo do escritor);
- a que remete a tipos textuais (ou “fatores tipológicos”), ligados a modelos cognitivos globais, às estruturas e superestruturas ou a aspectos formais de caráter lingüístico próprios de cada tipo de discurso e/ou a cada tipo de texto: tipologias ligadas a estilos de época. Por superestrutura entendem-se, entre outras, estruturas argumentativas (( Tese anterior) - premissas - argumentos (contra-argumentos) - (síntese) - conclusão (nova tese)); estruturas narrativas (situação - complicação - ação ou avaliação - resolução (moral ou estado final) etc.; (cf. FÁVERO, L. Coesão e coerência textuais. São Paulo, Ática, 1991, Vocabulário crítico , p.92 e KOCH & TRAVAGLIA: 1989, pp. 92-93).
Considerada por alguns autores como uma das condições para a existência de um texto, a intertextualidade se destaca por relacionar "um texto concreto com a memória textual coletiva, a memória de um grupo ou de um indivíduo específico" (Mira Mateus et alii, 1983)
Trata-se da possibilidade de os textos serem criados a partir de outros textos. As obras de caráter científico remetem explicitamente a autores reconhecidos, garantindo, assim, a veracidade das afirmações. Nossas conversas são entrelaçadas de alusões a inúmeras considerações armazenadas em nossas mentes. O jornal está repleto de referências já supostamente conhecidas pelo leitor. A leitura de um romance, de um conto, novela, enfim, de qualquer obra literária, nos aponta para outras obras, muitas vezes de forma implícita.
A nossa compreensão de textos (considerados aqui da forma mais abrangente) muito dependerá da nossa experiência de vida, das nossas vivências, das nossas leituras. Determinadas obras só se revelam através do conhecimento de outras. Ao visitar um museu, por exemplo, o nosso conhecimento prévio muito nos auxilia ao nos depararmos com certas obras.
Um texto remete a outro para defender as idéias nele contidas ou para contestar tais idéias. Assim, para se definir diante de determinado assunto, o autor do texto leva em consideração as idéias de outros "autores" e com eles dialoga no seu texto.
Trabalharemos com um texto da disciplina Filosofia ("Questão da Objetividade") e uma crônica de Zuenir Ventura, no JB ("Em vez das células, as cédulas") para concretizar um pouco mais o conceito de intertextualidade.

Texto 1 - Filosofia

Questão da objetividade
As Ciências Humanas invadem hoje todo o nosso espaço mental. Até parece que nossa cultura assinou um contrato com tais disciplinas, estipulando que lhes compete resolver tecnicamente boa parte dos conflitos gerados pela aceleração das atuais mudanças sociais. É em nome do conhecimento objetivo que elas se julgam no direito de explicar os fenômenos humanos e de propor soluções de ordem ética, política, ideológica ou simplesmente humanitária, sem se darem conta de que, fazendo isso, podem facilmente converter-se em "comodidades teóricas" para seus autores e em "comodidades práticas" para sua clientela. Também é em nome do rigor científico que tentam construir todo o seu campo teórico do fenômeno humano, mas através da idéia que gostariam de ter dele, visto terem renunciado aos seus apelos e às suas significações. O equívoco olhar de Narciso, fascinado por sua própria beleza, estaria substituído por um olhar frio, objetivo, escrupuloso, calculista e calculador: e as disciplinas humanas seriam científicas!
(Introdução às Ciências Humanas. Hilton Japiassu. São Paulo, Letras e Letras, 1994, pp.89/90)
Neste texto, temos um bom exemplo do que se define como intertextualidade: as relações entre textos, a citação de um texto por outro, enfim, o diálogo entre textos. Muitas vezes, para entender um texto na sua totalidade, é preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s).
No trecho acima, por exemplo, em que se discute o papel das Ciências Humanas nos tempos atuais e o espaço que estão ocupando, é trazido à tona o mito de Narciso. É preciso, então, dispor do conhecimento de que Narciso, jovem dotado de grande beleza, apaixonou-se por sua própria imagem quando a viu refletida na água de uma fonte onde foi matar a sede. Suas tentativas de alcançar a bela imagem acabaram em desespero e morte.
O último parágrafo, em que o mito de Narciso é citado, demonstra que, dado o modo como as Ciências Humanas são vistas hoje, até o olhar de Narciso, antes "fascinado por sua própria beleza", seria substituído por um "olhar frio, objetivo, escrupuloso, calculista e calculador", ou seja, o olhar de Narciso perderia o seu tom de encantamento para se transformar em algo material, sem sentimentos. A comparação se estende às Ciências Humanas, que, de humanas, nada mais teriam, transformando-se em disciplinas científicas.

Texto 2 - Crônica de Zuenir Ventura

Em vez das células, as cédulas
Nesses tempos de clonagem, recomenda-se assistir ao documentário Arquitetura da destruição, de Peter Cohen. A fantástica história de Dolly, a ovelha, parece saída do filme, que conta a ventura demente do nazismo, com seus sonhos de beleza e suas fantasias genéticas, seus experimentos de eugenia e purificação da raça.
Os cientistas são engraçados: bons para inventar e péssimos para prever. Primeiro, descobrem; depois se assustam com o risco da descoberta e aí então passam a gritar "cuidado, perigo". Fizeram isso com quase todos os inventos, inclusive com a fissão nuclear, espantando-se quando "o átomo para a paz" tornou-se uma mortífera arma de guerra. E estão fazendo o mesmo agora.
(...) Desde muito tempo se discute o quanto a ciência, ao procurar o bem, pode provocar involuntariamente o mal. O que a Arquitetura da destruição mostra é como a arte e a estética são capazes de fazer o mesmo, isto é, como a beleza pode servir à morte, à crueldade e à destruição.
Hitler julgava-se "o maior ator da Europa" e acreditava ser alguma coisa como um "tirano-artista" nietzschiano ou um "ditador de gênio" wagneriano. Para ele, "a vida era arte," e o mundo, uma grandiosa ópera da qual era diretor e protagonista.
O documentário mostra como os rituais coletivos, os grandes espetáculos de massa, as tochas acesas (...) tudo isso constituía um culto estético - ainda que redundante (...) E o pior - todo esse aparato era posto a serviço da perversa utopia de Hitler: a manipulação genética, a possibilidade de purificação racial e de eliminação das imperfeições, principalmente as físicas. Não importava que os mais ilustres exemplares nazistas, eles próprios, desmoralizassem o que pregavam em termos de eugenia.
O que importava é que as pessoas queriam acreditar na insensatez apesar dos insensatos, como ainda há quem continue acreditando. No Brasil, felizmente, Dolly provoca mais piada do que ameaça. Já se atribui isso ao fato de que a nossa arquitetura da destruição é a corrupção. Somos craques mesmo é em clonagem financeira. O que seriam nossos laranjas e fantasmas senão clones e replicantes virtuais? Aqui, em vez de células, estamos interessados é em manipular cédulas.
(Zuenir Ventura, JB, 1997)

Tendo como ponto de partida a alusão ao documentário Arquitetura da destruição, o texto mantém sua unidade de sentido na relação que estabelece com outros textos, com dados da História.
Nesta crônica, duas propriedades do texto são facilmente perceptíveis: a intertextualidade e a inserção histórica.
O texto se constrói, à medida que retoma fatos já conhecidos. Nesse sentido, quanto mais amplo for o repertório do leitor, o seu acervo de conhecimentos, maior será a sua competência para perceber como os textos "dialogam uns com os outros" por meio de referências, alusões e citações.
Para perceber as intenções do autor desta crônica, ou seja, a sua intencionalidade, é preciso que o leitor tenha conhecimento de fatos atuais, como as referências ao documentário recém lançado no circuito cinematográfico, à ovelha clonada Dolly, aos "laranjas" e "fantasmas"- termos que dizem respeito aos envolvidos em transações econômicas duvidosas. É preciso que conheça também o que foi o nazismo, a figura de Hitler e sua obsessão pela raça pura, e ainda tenha conhecimento da existência do filósofo Nietzsche e do compositor Wagner.

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