quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Artigo: por uma nova leitura da África

POR UMA NOVA LEITURA DA ÁFRICA
Escritores anseiam por difundir a cultura de seus países e desfazer o estereótipo de um "continente exótico"

São 53 nações pobres, devastadas por décadas de guerra. Mas que apresentam um surpreendente "renascimento", traduzido em crescimento econômico, avanço em processos de democratização e maior inserção internacional. Considerada um "escândalo geológico" por guardar em seu subsolo a maioria absoluta dos recursos minerais globais, a África é alvo do interesse e da cobiça de um número crescente de potências econômicas. Só que ainda enfrenta o preconceito, a discriminação, não tendo se livrado da imagem de uma terra exótica, primitiva, miserável e incapaz de se reconstruir por conta própria.
Todo esse mar de contradições que circunda os 30 milhões de quilômetros quadrados do continente africano (22,5% das terras do globo) basta para indicar que é preciso conhecer melhor o que se passa por lá. As diferentes Áfricas, suas culturas, seus idiomas, as histórias de suas nações, suas potencialidades, os caminhos para o desenvolvimento de suas sociedades merecem atenção e pesquisa, para a qual a literatura originada no próprio continente tem farto material a oferecer.
A despeito da precariedade de vida, dos altos índices de analfabetismo, dos traumas ainda sofridos por anos de conflitos armados e demais adversidades, uma legião crescente de escritores de origem africana se revela, contando a história do continente em poesias, romances, contos, que, ainda hoje, reafirmam a diversidade e trazem a marca da resistência cultural. A literatura teve papel fundamental nos processos de independência política dos países africanos.
A considerar especificamente as colônias portuguesas foram intelectuais como Agostinho Neto (Angola), Jorge Barbosa (Cabo Verde), José Craveirinha (Moçambique), Marcelino dos Santos (Moçambique), José Luandino Vieira (Angola), entre outros, que se desviaram da chamada literatura colonial - alienada, feita por autores exógenos e transpassada de preconceitos - para lançar escritos carregados de sentimento nacional, consciência e indignação. "Os poetas foram os primeiros grandes líderes revolucionários na África.
Primeiro, nós escrevemos poemas com palavras de libertação, como o "É preciso plantar" (de 1953, finalizado com os versos "É preciso plantar / pelos caminhos da liberdade / a nova árvore / da Independência Nacional"); depois, muitos de nós partimos para a luta armada", conta Marcelino dos Santos , hoje com 79 anos.
À época, ele assinava seus escritos com os pseudônimos Kalungano e Lilinho Micaia. Foi fundador da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e, após a independência, em 1975, se tornou primeiro Ministro da Planificação e Desenvolvimento.
Uma boa explicação ele dá para o crescimento da língua portuguesa nas colônias e a adoção do idioma pelos escritores nos movimentos de libertação: "Nós queríamos integrar o continente. A nossa poesia dava conta de problemas que eram comuns a toda África. Adotar a língua portuguesa foi uma estratégia, já que a pluralidade de idiomas e o enorme analfabetismo dificultavam a difusão das nossas ideias libertárias."
O uso da língua portuguesa pela grande parte dos escritores nas ex-colônias de Portugal é motivo de polêmica até os dias atuais. É bem verdade que a expansão da língua se deu às custas de vários idiomas, que simplesmente desapareceram. Moçambique, por exemplo, contava com mais de 20 idiomas.
Em Angola, a língua portuguesa confrontou-se, em especial, com o quimbundo, que até os colonos portugueses eram obrigados a aprender. Mas houve uma "apropriação" e uma "nacionalização" da língua portuguesa por parte dos africanos. Para José Luandino Vieira, o português representou um "troféu de guerra". Após a independência de Angola, ele defendeu que esse fosse o idioma oficial do país.
á também o registro de que o escritor Luís Bernardo Honwana, natural de Maputo, militante da Frelimo e autor do livro de contos "Nós Matamos o Cão Tinhoso", tenha respondido "a língua portuguesa é nossa também", ao ser questionado, pela plateia de uma palestra que proferiu na Universidade de Minnesota, Estados Unidos, em 1979, "por que, após a independência, os escritores de Moçambique não abandonavam a língua do colonizador?". De fato, vencidas as lutas de independência, a literatura na África ganha um tom de orgulho e a "nacionalização" da língua portuguesa pode ser observada pelo uso que vários escritores fazem de neologismos e termos de idiomas locais misturados às palavras em português. A língua foi reinventada - e, diga-se, continua a ser assim na literatura contemporânea do continente.

"Nós queríamos integrar o continente. A nossa poesia dava conta de problemas que eram comuns a toda África. Adotar a língua portuguesa foi uma estratégia, já que a pluralidade de idiomas e o enorme analfabetismo dificultavam a difusão das nossas idéias libertárias"
Marcelino dos Santos

Com suas nações independentes, os escritores passaram a defender de forma muito intensa a cultura africana e afirmar a diversidade. Era importante definir posição nas sociedades pós-coloniais. E o fizeram com extrema criatividade e liberdade, rompendo com os padrões europeus e com as normas cultas, abusando de misturas que reafirmavam suas identidades.
O negro, antes sofredor, passava a protagonizar com heroísmo. É dessa fase, por exemplo, o romance "Mayombe", de Pepetela, pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, que foi militante do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e é hoje um dos maiores escritores angolanos, com 16 romances publicados desde 1973. "Mayombe" foi o terceiro. Escrito entre 1970 e 1971, foi lançado em 1980, contando a história de um grupo de guerrilheiros do MPLA , em ação numa floresta, na região de Cabinda, distante da capital Luanda. Os personagens são nomeados com alcunhas de guerra - Comandante Sem Medo e Comissário Político são os principais, os heróis na grande epopeia. A guerrilha é louvada já na dedicatória: "Aos guerrilheiros do "Mayombe", que ousaram desafiar os deuses."
"Mayombe" é considerado um romance épico. O próprio isolamento do grupo na floresta é condição favorável para o desenho de uma utopia. O romance, no entanto, embute também as primeiras críticas ao movimento, ao sistema e ao que já se previa para o país após a independência.

De modo geral, passado o efeito da vitória nas lutas de libertação, a literatura africana cai na dura realidade do pós-colonialismo. E é múltipla a produção literária nesse período, em que não há mais otimismo e o sonho da transformação dá lugar à consciência crítica. Alguns autores recorrem ao passado - em romances históricos - para explicar as mazelas do presente. Também é frequente a crítica irônica. Em Angola, Manoel Rui lançou, em 1982, a novela satírica "Quem me dera ser onda" , denunciando a burocracia e a corrupção, em paródias do cotidiano.

Pepetela, por sua vez, lançou "O cão e os caluandas" (1985), também usando de certa ironia ao abordar a desagregação cultural, social e política. Ele fez de Luanda o microcosmo, por onde passeia um cão, revelando, em fragmentos, as vivências dos moradores da capital angolana.
No mesmo ano (1985), Pepetela lançou também "Yaka" - dessa vez recorrendo a aspectos históricos e retratando Benguela, sua cidade natal. "Yaka" é a estátua que acompanha cem anos da colonização. Em 1989, publicou "Lueji: O Nascimento de Um Império", também pontuado pela história (são retratados dois momentos separados por 400 anos). Em 1992, Pepetela manifesta de forma mais direta sua indignação pelo que se sucedeu à independência com "Geração da Utopia" - em que o próprio título adianta a temática.

Ainda que com uma colonização bastante diferente, Cabo Verde apresenta essas mesmas fases em sua literatura. O aspecto épico fica evidente na poesia de João Varela (que também assinava como João Vário e Timótio Tio Tofe), autor de "O Primeiro Livro de Notcha", publicado em 1975.
A ironia aparece na obra de Germano de Almeida, que em 1989 publicou "O meu poeta", considerado o primeiro romance nacional. Com humor e sarcasmo, Germano satiriza a realidade de Moçambique após a independência.
Na Guiné-Bissau, a crítica vem em tom um pouco mais mordaz na obra de Abdulai Sila, que inaugurou a prosa no país, com "Eterna paixão" (1994). Nesse romance, é através de um personagem afro-americano que o autor mostra o decepcionante quadro do pós-colonialismo. Um ano depois, ele publicou "A Última Tragédia", com referência ao período colonial. E, em 97, lançou "Místida", uma metáfora em que os protagonistas perdem a memória, o dom da palavra, a visão, num quadro de decadência e aniquilação paralelo ao vivido à época. Nesse mesmo ano (1997), Filinto de Barros, que havia sido dirigente do PAI GC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) e ministro na Guiné, publicou o romance "Kikia Macho", onde usa o aspecto mítico para falar da desesperança

Maturidade e reconhecimento
O desenvolvimento da arte - e da produção - literária na África teve e tem características próprias em cada região e em cada país, sobretudo em função da colonização e da língua. Mas é fato que num período relativamente curto - desde a descolonização europeia, 1957, até os dias atuais - houve um grande amadurecimento em quase todo o continente. E o que surpreende é ter se dado num contexto de guerras civis e caos social - o pano de fundo da maior parte das obras literárias do continente ainda hoje.

Alguns dos primeiros autores são as estrelas da literatura contemporânea - o que permite, pelo conjunto de suas obras, uma análise da evolução do fazer literário. É o caso de Pepetela - cujo primeiro livro foi escrito em 1973 (antes até da independência de Angola) e o 16o romance - "O Quase Fim do Mundo" - foi lançado no ano passado. Nesse meio tempo, Pepetela se aventurou até no estilo policial, com "Jaime Bunda, Agente Secreto" (2001) e "Jaime Bunda e a Morte do Americano" (2002). O autor diz que o estilo foi apenas um pretexto para mais uma vez descrever - com humor e crítica - a sociedade angolana: "o policial (o anti-herói Jaime Bunda, paródia de James Bond) entra em todos os lados, em todos as classes e meios sociais".
Nestes dois livros, a crítica social e política já se refere ao neocolonialismo americano. Em 2005, com "Predadores", o autor denuncia as novas elites e o ambiente político que as favorece.

Ainda que não tenham começado lá no período colonial, outros tantos autores despontaram no final da década de 80, com obras de tal qualidade, que rapidamente mereceram o reconhecimento internacional. É o caso dos angolanos José Eduardo Agualusa e Ana Paula Tavares, e do moçambicano Mia Couto. O primeiro soma mais de vinte publicações desde 1989 - são romances, novelas, poesias, contos e guias, que renderam ao autor uma grande coleção de prêmios - o primeiro deles (Prêmio Revelação Sonangol) tendo sido concedido já para o seu primeiro romance, "A Conjura".

"As pessoas que têm vontade de ler não têm dinheiro para comprar os livros e as que têm dinheiro não se interessam pela literatura."
Pepetela, pseudônimo de Artur Pestana, escritor angolano.


A poetisa Ana Paula Tavares inaugura sua obra com "Ritos de Passagem". Depois passeia por contos e, em coautoria com Manoel Jorge Marmelo, publica o romance "Os Olhos do Homem Que Chorava no Rio" (2005). Seu último lançamento foi "Crônicas Para Amantes Desesperados" (2007).
Mia Couto estreou em 1983, com o livro de poemas "Raiz do Orvalho"; depois partiu para contos e, em 1992, lançou seu primeiro romance, "Terra Sonâmbula". Recebeu, entre outros, o prêmio Virgílio Ferreira - um dos mais importantes prêmios literários de Portugal - pelo conjunto de sua obra, em 1999.
Estes fazem parte de um grupo pequeno (mas crescente) de autores que têm suas obras publicadas fora de seus países - e, quase sempre, traduzidas para vários idiomas. Os prêmios literários que conquistam repercutem e fazem despontar novos talentos.
São muito poucas as editoras nos países africanos e o preço dos livros quase sempre inviáveis para a população local. "As pessoas que têm vontade de ler não têm dinheiro para comprar os livros e as que têm dinheiro não se interessam pela literatura", comenta Pepetela, contando que os escritores que publicam só em Angola vendem em torno de 2 mil exemplares, enquanto ele, publicando em Portugal, chega a vender mais de 20 mil.
Os livros também não circulam no próprio continente africano, nem mesmo entre os países da mesma língua. Escritores de diferentes nações pouco se conhecem - quase sempre são apresentados quando participam de eventos de literatura no exterior.
Foi assim, em novembro, na quarta edição da Fliporto (Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas), em Pernambuco, que teve a diáspora negra como tema e reuniu nomes importantes da literatura dos países lusófonos, além de acadêmicos e pesquisadores.
"Não há dinheiro que financie a arte literária na África. Não há condições de promovermos intercâmbio. Quase não são realizados eventos de literatura e, por isso, nós, escritores, pouco nos conhecemos. Não há recursos para que um escritor viaje a outro país africano para apresentar seu trabalho ou participar de um seminário. Em outras artes - na música, por exemplo - há mais incentivos; os artistas se movimentam mais e divulgam mais seus trabalhos", comentou Paulina Chiziane, considerada a primeira romancista de Moçambique e um dos grandes destaques na Fliporto.
Ao final do evento, emocionada, ela acrescentou: "É muito difícil o nosso acesso à literatura estrangeira. Os livros só nos chegam através do Brasil ou de Portugal e são muito caros. Então, a gente vem aprender como é a literatura do país que está ao nosso lado aqui, num encontro como esse, que às vezes acontece também na Europa. Mas aqui no Brasil é diferente. Aqui, hoje, eu aprendi que se pode fazer festa da literatura. Isso para mim é novo - esse conceito. Um ambiente onde se fala de cultura de forma cultural - é uma experiência nova para mim."

Paulina Chiziane foi a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique - "Balada do Amor ao Vento" (1990), em que narra um amor proibido. Depois, em 1993, ela lançou "Ventos do Apocalipse", mostrando a situação da mulher durante a guerra.
"O Sétimo Juramento", seu terceiro livro, narra a história de um combatente que recorre à feitiçaria para resolver questões profissionais. "Em Niketche: uma história de poligamia" (2002), ela fala de uma prática tradicional em algumas regiões do país.
"Eu abordo assuntos polêmicos, como a poligamia, que, mesmo combatida pela Igreja e pelo sistema, agora, está a se restabelecer. Em Moçambique, há, praticamente, duas religiões: no sul e no interior, a cristã; no litoral e no Norte, a mulçumana. Os portugueses levaram a monogamia para o sul, enquanto os mulçumanos praticam a poligamia no norte. A religião define os costumes", diz Paulina.
Seu último romance - "O Alegre Canto da Perdiz" (2008) - aborda o racismo entre os próprios africanos - uma mãe negra tem filhos mestiços para "aliviar o negro de sua pele, como quem alivia as roupas de luto".
Com extrema modéstia, Paulina ainda não se acostumou com o título de romancista e diz que os livros surgiram do prazer de fazer breves anotações diárias. A modéstia é também característica da escritora Dina Salústio, autora de "A Louca de Serrano" (1998), primeiro romance de autoria feminina em Cabo Verde: "sou apenas uma mulher que escreve umas coisas".
Assim como Paulina, Dina - também em poesias e contos - retrata o universo feminino, "para mostrar o meu reconhecimento às mulheres caboverdianas que trabalham duro, que carregam água, que trabalham a terra, que têm obrigação de cuidar dos filhos, de acender o lume (...). Falo das mulheres intelectuais, daquelas que não são intelectuais, daquelas que não têm nenhum meio de vida escrito; falo da prostituta... Em Cabo Verde, quando nasce uma menina, ela já é uma mulher".
Outro aspecto em comum entre as duas escritoras é aproximarem seus textos do realismo mágico (a característica que ficou destacada na obra do colombiano Gabriel Garcia Márquez). Dina cria uma Serrano mítica - aldeia onde a vida cotidiana beira o absurdo, com seres de "estranhos costumes", animais que nunca se mexem, pedras com miolo mole e mulheres estéreis que engravidavam por milagre. A louca, assim como outras personagens femininas do livro, denuncia a violência e as privações a que são submetidas as mulheres em Serrano, como também na sociedade caboverdiana.
Para Paulina o seu "realismo mágico" nada mais é do que a própria realidade que vive, repleta de magias e mistérios. "O Sétimo Juramento" trata da feitiçaria. As pessoas da Europa não compreendem muito bem o que é isso. Me perguntavam se era um realismo mágico da América Latina. Eu não sei o que é o realismo mágico da América Latina. O que eu coloquei no livro foi a realidade da minha região", comentou, durante a Fliporto.
O evento contou ainda com outra grande revelação da literatura lusófona - o jovem Onjdaki, que, aos 31 anos, já tem 12 livros publicados, entre contos, poesias e romances.
O escritor - que também é sociólogo e roteirista - nasceu em Luanda e em sua obra, quase sempre traz a memória da infância. Ele justifica: "A experiência da infância é, em geral, muito forte." Através de uma lente de lirismo, Ondjaki vai mostrando a dura realidade de seu país na década de 80. "Eu não faço uma análise crítica do regime; até poderia, mas preferi o olhar das crianças, dizendo com inocência e imparcialidade, o que estava a se passar", explica o autor de "Bom Dia, Camaradas", romance lançado em 2001 e escrito quase que em apenas dois meses. "Um editor me perguntou se eu tinha algo sobre a independência e o período posterior. Eu respondi que sim e entreguei o livro dois meses depois."

Ondjaki é frequentemente questionado sobre o caráter autobiográfico de seus escritos e ele responde que "todo autor passa sua experiência pessoal para o livro". Diz que Luanda é uma cidade que se presta muito à ficção - "todo dia tem uma boa história, um bom mundo para contar" - mas que também há muitas "cidades inventadas" em seus textos.

Representando a Guiné-Bissau, participou da Fliporto o poeta e jornalista Tony Tcheka , lançando "Guiné, Sabura Que Dói", onde, com extrema elegância, ele aponta a destruição sofrida em seu país. O poeta menciona a fome, a criança que não tem tempo para a infância, a guerra e, principalmente, a força da mulher guineense. Essa é também a temática de seu "Noites de Insônia na Terra Adormecida" (1987).
"Eu falo da Guiné. De suas esperanças e desesperanças. E dedico o livro à mulher guineense. A mulher é a pedra angular para manter a família na Guiné. Ela é chefe de família numa sociedade machista. E ela é quem trava a prostituição, o consumo de drogas; evita a desagregação familiar e social. A sua ação tem resultados imediatos. Ela produz, vende e leva alimento para casa. No livro eu mostro isso. Não só destaco a beleza física e espiritual da mulher, mas a luta que ela trava, porque é duplamente explorada - pela sociedade e pelos seus próprios homens, os maridos. Também falo sobre as crianças. Em "Noites de Insônia na Terra Adormecida", procurei tratar de valores universais".

Tony Tcheka foi coordenador das primeiras e maiores antologias poéticas da Guiné-Bissau "Mantenhas Para Quem Luta", "Momentos Primeiros da Construção", "Antologia da Poesia Moderna Guineense" e "Ecos do Pranto" - todas com poesias em crioulo.
"Mantenhas Para Quem Luta" foi editada, logo após a independência, pelo Conselho Nacional de Cultura, reunindo poesias de um grupo de 14 jovens identificados com o movimento de libertação nacional, que ficaram conhecidos como "os meninos da hora do Pindjiguiti. "Pindjiguiti é um porto de Bissau, onde foram reprimidos estivadores e marinheiros que estavam a protestar por menos horas de trabalho e melhores salários. Houve confronto e eles foram baleados por soldados portugueses", explica.
Segundo Tcheka, nas duas primeiras antologias buscou-se poemas que abordassem, basicamente, a luta pela libertação; já na Antologia da Poesia Moderna houve uma mistura de temas e já existia maior preocupação com o estilo literário - "era uma poesia mais adulta e menos engajada, do ponto de vista ideológico". "Ecos do Pranto", por sua vez, é uma reunião de poemas que tem a criança como tema.
Tcheka explica que a razão das antologias era não haver dinheiro para publicar as obras de cada autor em separado - "então nós fazíamos esses pactos de publicação conjunta. Depois, com financiamento da União Europeia, é que foram editadas sete ou oito obras individuais. Foi a primeira oportunidade para os autores da Guiné".
Ele comenta também uma das características mais presentes na literatura africana - a oralidade: "O hábito de escrever é natural. Nós costumamos dizer que escrevemos e publicamos todos os dias. Isso porque temos como costume os encontros em que se contam estórias tradicionais, fábulas, contos infantis, cada qual com sua própria linguagem e formas de expressão. E essa é uma forma de 'editar'. Na Guiné, esses encontros são chamados de Djumbai e sempre há um orador, um trovador. É uma tradição antiga que foi preservada e ajuda a manter as pessoas num espaço de convívio, de troca de experiências; ajuda a manter viva a criatividade artística. Esses encontros resistiram à modernidade.
É uma forma de editar adaptada às circunstâncias - já que quase não temos editoras. As pessoas perguntam aos autores se têm trabalhos publicados e, sem querer, nós respondemos 'tenho sim, publiquei esse poema no evento tal, esse outro naquele dia...'.
Ou seja, os djumbai são momentos editoriais. Nossas sociedades não perderam a sua identidade graças à oralidade."

"O hábito de escrever é natural. Nós escrevemos e publicamos todos os dias no djumbai, encontros em que se contam histórias tradicionais, fábulas, contos infantis. Essa é uma forma de editar"
Tony Tcheka

Tcheka comenta que na Guiné existem atualmente duas editoras pertencentes a dois escritores e elas publicam quase que exclusivamente os livros deles. "Não há política editorial e nenhum incentivo a autores e editores. Também faltam livrarias."
Entre 75 e 80, no entanto, ele comenta que houve maior apoio e muitos sarais culturais eram realizados nas casas de cultura e bibliotecas, "que, antes, só conheciam autores portugueses". Segundo o escritor, a Guiné-Bissau foi uma das colônias portuguesas que melhor se organizou na década de 60. Ele diz que a luta pela independência foi considerada um "ato de cultura" e que foi uma luta bem conduzida do ponto de vista político. "Depois, então, é que nós vivemos onze anos de guerra - uma epopeia que não encontra correspondência política ou econômica.
O país está em fase de estagnação com enormes prejuízos. Embora haja democracia, pluripartidarismo, a situação é catastrófica. As diferenças sociais são enormes, a educação fica em segundo plano, o país está na rota do narcotráfico. Nossa esperança é a criação de um programa para autodeterminação dos povos africanos. Vamos crer que a eleição do presidente americano possa contribuir para isso."

Revista Literatura, edição 24, ano 2009

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