quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Artigo: sobre a África

NA BERLINDA
Continente africano ocupa um novo lugar no cenário internacional

Um século de colonização europeia, seguido de algumas décadas de guerra. Essa é em resumo a história da África, fundamentalmente um continente enfraquecido, dominado e prostrado diante dos interesses internacionais, como costuma afirmar Carlos Moore, doutor em ciências humanas e um dos maiores especialistas em assuntos da América Latina e África.
O território africano foi dividido entre países da Europa ocidental na Conferência de Berlim, em 1885, sem que quaisquer questões étnicas e culturais tivessem sido consideradas. O Egito foi o primeiro país a conquistar sua independência em 1922; depois, África do Sul e Etiópia, nos anos 1940. A descolonização foi favorecida pela Segunda Guerra Mundial e se intensificou a partir dos anos 1960.
A independência, no entanto, não trouxe a liberdade e autonomia almejadas pelos povos africanos - "O processo de independência foi minado por relações neocolonialistas: a maioria esmagadora de líderes que chegaram ao poder já estava corrompida e entregue aos interesses hegemônicos mundiais. Tratava-se de elites coniventes com os interesses imperialistas e hegemônicos da Europa Ocidental, dos Estados Unidos e do Japão", aponta Moore.
Vencedores nos movimentos de libertação, vários líderes nacionalistas assumiram o poder em seus países logo após a independência e proclamaram uma África federativa, com um governo central. Entre esses líderes estavam os presidentes de Gana, Kwame Nkrumah; da Guiné, Sekou Touré; do Mali, Modibo Keita; do Congo Brazzaville, Alphonse Massamba Débat; da Tanzânia, Julius Nyerere; seguidos por Amílcar Cabral, na GuinéBissau; Nelson Mandela, na África do Sul; e Tomas Sankara, em Burkina Faso. "Esses líderes foram derrubados com sangrentos golpes de Estado. Em menos de trinta anos, 38 dirigentes africanos foram assassinados em circunstâncias ainda não elucidadas." Segundo Moore, em lugar destes dirigentes nacionalistas e pan-africanos é que ocuparam o poder os atuais governos, "colocados pelos países do Ocidente".
Sob esse ponto de vista, as elites e o poder dominante são os grandes fatores de atraso no desenvolvimento social das nações africanas, pois trabalham para manter o sistema desigual, exploratório, que os favorece. A opinião de Moore é compartilhada por outros estudiosos da evolução do continente que, no entanto, apontam um momento de transição e um avanço gradual nos processos de democratização dos regimes políticos, sem destacar o risco de que "novos arranjos entre elites locais e internacionais não tragam a autonomia decisória nem o desenvolvimento sustentável ao continente", como destaca José Flavio Sombra Saraiva, diretor geral do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI). "As economias no continente cresceram em tono de 5,6% por ano, desde o início da década. Apesar das crises políticas - na Guiné, Zimbábue, Darfur - há um processo positivo de democratização. O número de países africanos com conflitos armados caiu de 13 para 5, nos últimos seis anos", aponta Saraiva em pesquisa que desenvolve desde 1982.
No subsolo africano estão concentrados os principais minerais estratégicos para a indústria de alta tecnologia. Os 53 países são basicamente exportadores de petróleo, ouro, diamante, tungstênio, urânio e cobre. Mas só participam de 2% do comércio mundial e têm 1% da produção industrial do mundo.
Dona de 66% do diamante, 58% do ouro, 45% do cobalto, 17% do manganês, 15% da bauxita, 15% do zinco e 15% do petróleo - segundo as pesquisas do IBRI -, não é à toa que a África despertou a cobiça de outras potências emergentes, como a China, que lá desembarcou desde 1990, e também a Coreia do Sul, Índia, Turquia, Irã. "A África está no centro de uma concorrência fortíssima de interesses de todas as partes do globo; na berlinda da cena internacional contemporânea", afirma Saraiva.
Mas a imagem estereotipada de um continente exótico e primitivo é ainda prevalecente em todo o mundo - e favorece a exploração. A desinformação e o desprezo das sociedades de diferentes países em relação aos povos africanos contribuem para o enfraquecimento político das suas nações e é motivo de indignação entre os que têm consciência dessa realidade.
"A cooperação internacional virou uma indústria, tal como a indústria armamentista. É revoltante o cinismo da política internacional assim como a ignorância das sociedades no mundo inteiro. Projetos injustificáveis são feitos e só aumentam o déficit dos países africanos. Há forte entrave a produtos africanos pela política protecionista dos países do Ocidente, que pegam a matéria-prima da África, transformam e vão vender seus produtos para o mercado africano. Vamos crer que, finalmente, esse estrondo que sofreu o neoliberalismo traga uma reflexão e novas premissas - as do FMI estão em questão. O mercado não pode ser um altar inquestionável", defende Tony Tcheka.

Brasil - parceiro ou explorador
Em seus quatro primeiros anos de governo, o presidente Lula visitou mais de quinze países em sete viagens à África, o que resultou em acordos bilaterais e projetos de cooperação. A política do Brasil para África, no entanto, ainda tem muito a avançar. "O silêncio sobre o que acontece na África no debate político, nas universidades e na imprensa é indício do desinteresse generalizado pelo outro lado do Atlântico", reclama Flávio Saraiva. Ele defende a colocação do Brasil, com uma política externa voltada para a África, em posição de liderança num projeto cooperativo do Sul, reorientando o eixo diplomático e retomando um modelo de inserção internacional voltado para o desenvolvimento sustentável - mais produtivista e menos financista.
Carlos Moore, por sua vez, faz uma avaliação bastante objetiva da relação BrasilÁfrica: para ele está claro que há no Brasil um setor de ponta na economia, interessado em ter acesso às matérias-primas e ao mercado africano - crescente e excelente para escoamento de produtos manufaturados. Há também, segundo Moore, as elites eurocêntricas e europeizadas, admiradoras dos métodos norte-americanos, que não consideram a África como parceira a se respeitar, mas como continente provedor de escravos, digno de ser explorado e humilhado.
Essas elites têm, em suas mãos, os meios de comunicação e forjam imagens distorcidas que podem permitir que a opinião pública e a sociedade civil se mostrem omissas e coniventes com a exploração na África. "São forças conservadoras, tradicionalmente negrofóbicas, que herdaram um desprezo para com o continente africano que as cega ao ponto de se oporem ao desenvolvimento de relações econômicas entre suas empresas e os países africanos, embora essas relações favoreçam às suas próprias economias", disse o professor em entrevista ao Jornal Ìrohìn, em 2007.
A política africana que o Governo Lula pretende estabelecer junto a um conjunto de empresas brasileiras, para Moore, representa os interesses de grupos com uma visão bem mais ampla do que essas elites retrógradas que desprezam o continente. Entretanto, há uma forte tendência de o país repetir na África a relação neocolonial que outras potências já estão adotando. "Os chineses não estão nem um pouco preocupados se os trabalhadores empregados estão protegidos sindicalmente ou não. Eles estão simplesmente interessados em dispor de uma força de trabalho mais barata e se apropriar dos recursos do continente, pagando o menos possível."
A pressão da sociedade civil é, na opinião de Moore, a única forma de garantir que as empresas brasileiras atuantes no continente africano cumpram um código de conduta ética e evitem relações neoimperialistas.
Mas, para isso, a sociedade civil precisa de informação sobre a África e - conforme escreveu Flávio Saraiva - "as escolas continuam afônicas de estórias da África; as tragédias e genocídios ganham a cor espetacular das telas televisivas, enquanto as experiências de estabilização e crescimento econômico assim como as iniciativas políticas de redução da pobreza e das doenças endêmicas na África são silenciadas".

"Penso, muitas vezes, em Angola e no Brasil como dois irmãos separados durante a infância. Quando um dia se reencontram, o irmão rico ignora o pobre; o pobre, pelo contrário, conhece tudo sobre o rico, as suas vitórias e os seus dramas, e incomoda-o a ignorância do irmão."
José Eduardo Agualusa

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